segunda-feira, junho 08, 2009

A astúcia de Francisca


Quem não se lembra de Francisca, a protagonista dos "contos verídicos" que partilhei convosco e constam do arquivo em Etiquetas, sob o título "Aventuras de Francisca" ?

Há muito tempo que tinha prometido contar este episódio ocorrido em Rio Tinto, em que foi necessária alguma “astúcia” para Francisca se libertar duma situação de quase clausura a que estava submetida.

Estávamos em 1966. O pai de Francisca, acabava de regressar de uma curta estadia em Moçambique, para onde tinha partido 2 anos antes, aliciado pela cunhada que ali vivia há muitos anos e que segundo constava, possuía uma grande fortuna em Vila Cabral tendo-lhe enviado a necessária "carta chamada". Com ele levou os 2 filhos mais velhos, António e Isabel, ainda adolescentes, tendo deixado na aldeia a mulher e os 4 filhos mais novos, curiosamente esse foi o único período de tempo em que Francisca foi feliz nos 14 anos de vivência na aldeia.

Mas, tal como aconteceu com muitos que como ele partiam na esperança de um futuro melhor, depressa se apercebeu do fosso que separava a realidade do sonho e esse facto associado às saudades da família que deixara para trás, ditaram o seu regresso ao fim de 2 anos. Meses antes tinha mandado a filha, agora já com 17 anos, entregue aos cuidados de uma Senhora que conhecera em Lourenço Marques, tendo ele lá ficado o tempo necessário para ganhar o suficiente para a viagem de regresso ao lar, enquanto o filho António optava por ficar e ali cumprir o serviço militar.

Um dia chegou à aldeia uma misteriosa carta endereçada a Isabel, sendo a própria Francisca a servir de carteiro. Através do remetente viram tratar-se da senhora ricaça a quem o pai tinha confiado a filha durante a viagem de barco e que agora lhe fazia uma oferta de trabalho como “empregada doméstica” na sua casa em Rio Tinto, onde a família residia e ela passava parte do ano, alternando com longos períodos em África.


Convém aqui referir que Isabel tinha “alergia ao trabalho”, doença que se agravara consideravelmente com os ares africanos, enquanto Francisca, 5 anos mais nova, assim como os irmãos, forneciam uma preciosa ajuda aos pais no trabalho do campo. Agora com quase 13 anos, Francisca sonhava deixar a aldeia e aquela carta parecia caída do céu. A irmã apressou-se a rejeitar a oferta da senhora, sugerindo-lhe que em seu lugar levasse a irmã mais nova que já possuía alguma experiência.

E foi assim que numa manhã de Primavera, um Mercedes Benz conduzido por uma corpulenta cinquentona de aspecto austero, acompanhada de um homem um pouco mais velho, de ar bondoso e simpático, estacionou junto ao chafariz da aldeia, perante os olhares curiosos dos habitantes e após uma breve troca de palavras com a mãe da pequena, Francisca despediu-se, entrou no luxuoso carro e partiu à aventura.


Não era a primeira vez que Francisca saía de casa. Logo que completou a 4ª Classe, foi trabalhar numa vila próxima, num estabelecimento comercial que incluía mercearia, um pequeno café e bombas de combustível, onde permaneceu 1 ano ajudando nas diversas tarefas, tendo sido tratada com carinho. Mas algo lhe dizia que a sua vida no Porto seria diferente. A mãe tinha-a alertado para alguns perigos, mas Francisca era corajosa, aventureira e muito determinada.

Os primeiros dias decorreram normalmente. A família era composta pelo casal já referido, uma filha cujo marido estava em África e 2 netas gémeas da idade de Francisca, um neto de 5 anos cujos pais Francisca não chegou a conhecer. A pequena simpatizou logo com uma das gémeas, de nome Arminda, sentindo alguma animosidade por parte da irmã Clotilde e cedo se apercebeu que ambas tinham verdadeiro pavor da avó, reparando que se afastavam dela sempre que a senhora emproada estava por perto. Aliás, era notório que todos naquela casa, incluindo o marido, se submetiam às ordens da matriarca. Francisca chegou a assistir a agressões físicas às crianças e pelo menos uma vez viu o senhor levar um valente soco sem reagir. Pelo que observava, concluiu que a senhora devia ser muito rica e importante na região e parecia-lhe ser mais temida do que respeitada, reparando nas migalhas que distribuía aos pobres em contraste com as avultadas ofertas à paróquia local, assistindo também a comentários da vizinhança aludindo ao modo como a ricaça se pavoneava no seu mercedes.

Francisca não tinha razão de queixa do dono da casa, de quem inclusive sentia pena, mas à parte os momentos em que à revelia da velha bruxa, a pequena "Loquinhas", assim lhe chamavam em família, lhe dirigia um sorriso ou uma palavra amiga, não se sentia bem ali e não tencionava ficar muito tempo. Por seu lado, a senhora emproada, reclamava consecutivamente das tarefas que lhe destinava e acusava-a de falta de humildade, que obviamente não era submissa como os negros que a serviam e além disso tinha a ousadia de a enfrentar, respondendo-lhe e revelando capacidade de raciocínio com alguma rebeldia à mistura, o que para ela era inadmissível. Era uma daquelas senhoras capazes de mostrar bondade, fazendo questão de depositar sempre uma moeda na mão de cada mendigo que lhe batia à porta, ao mesmo tempo que racionava alimentos, dominava e explorava quem a rodeava ou servia.

Um dever irrefutável de Francisca era levantar-se cedo e assistir à missa das 7,30 todos os Domingo, enquanto a família tinham o privilégio de fazer o mesmo em horário nobre, às 11 horas. E não adiantava reclamar! Às 6 da manhã soava a sineta e Francisca era obrigada a levantar-se e obedecer. Lembra-se de pelo menos uma vez ter desobedecido, não chegando a sair e em vez disso ter-se estendido na trave de granito situada sobre o portão da propriedade e ali, escondida pela folhagem das parreiras, ter retomado o sono, sendo acordada pelo som das vozes das pessoas que regressavam da missa mesmo a tempo de encenar uma triunfante entrada em casa!

Tinham-se passado quase 3 meses e Francisca não vira ainda qualquer pagamento pelo seu trabalho, apesar de já ter questionado a patroa sobre o assunto e ter inclusive manifestado intenção de regressar a casa dos pais. A situação arrastava-se e um dia as coisas entre as duas aqueceram a sério.

Foi numa manhã de Domingo. Incumbida de varrer a adega e ajudar na limpeza das coelheiras, Francisca executava a tarefa demasiado lenta ou sem a perfeição exigida, o que enfureceu a patroa que lhe arrancou bruscamente a vassoura das mãos, ameaçando partir-lha nas costelas.

Francisca não esperou nem mais um dia!!! Correu em direcção ao portão, atravessou a rua e dirigiu-se ao largo da igreja. Entrou numa taberna e ali perguntou onde ficava a esquadra. Um dos clientes apresentou-se como polícia, mostrando-se atencioso e disposto a ajudar, questionando-a sobre as razões que a levavam a dirigir-se às autoridades num Domingo e Francisca encorajada pela confiança que a farda lhe inspirava, contou-lhe o que se passava.
Num tom calmo, quase paternal, o senhor disse-lhe que por ser Domingo não podia recolher a queixa na esquadra e convenceu-a a regressar a casa e a manter-se serena, prometendo-lhe que no dia seguinte pelas 9 horas se deslocaria a casa da patroa para resolver a situação.

Francisca regressou a casa e estranhou o silêncio da patroa, mas na sua ingenuidade acreditou que no dia seguinte ela seria surpreendida pela policia. o que não chegaria a acontecer. Pelas 6 horas da manhã de Segunda Feira foi acordada e intimada a arrumar as suas coisas, porque iria regressar a casa, tendo-lhe o patrão confidenciado que não receasse que os seus direitos estavam garantidos. Em silêncio, os 3 fizeram a viagem no mercedes até à Régua, onde entraram nos CTT e a patroa emitiu um vale dirigido à mãe de Francisca, no valor do salário de 3 meses, ao qual descontou o valor do bilhete de comboio que Francisca teria de apanhar para fazer o resto do percurso.

Só então durante o trajecto de comboio, sozinha com os seus pensamentos, Francisca tomou consciência da tramóia montada pela patroa com a cumplicidade do amável polícia! Influente como a senhora era na zona, era agora óbvio para ela que fora imediatamente por ele alertada para o risco que corria mantendo em sua casa aquela garota rebelde e antes que lhe criasse um problema mais sério, certamente aconselhou a sua devolução à procedência. Apesar do logro em que sabia ter caído, Francisca sentia-se orgulhosa da sua atitude e aliviada por ter precipitado o regresso à aldeia, sentindo-se de novo livre.


E foi assim que ao fim da tarde desse dia, para grande espanto da mãe que a supunha a muitos km dali, Francisca surgiu de mala à cabeça ao fundo da rua:

- Então, filha, já de volta? Despediste-te ou mandaram-te embora?

- Eu queria vir há muito, mas a mazona além de me tratar mal, não me trazia de volta nem me pagava o combinado. Então fui fazer queixa à Polícia e finalmente voltei.

- Ora fizeste tu muito bem. Apoiada !!! Foi a resposta da mãe, batendo palmas.


21 comentários:

Conversa Inútil de Roderick disse...

E eu a pensar que a Francisca ia casar com u familar ou coisa que o valha. Mas não deixou de ser engraçada a história. Ah GRANDA FRANCISQUINHA!!!!!!!!!!!!!

Parisiense disse...

Cada um deve lutar pelos seus direitos.....e acho que muita gente deveria fazer como a Francisca.

Adorei a historia......agora fico á espera do seguimento...que continuou a fazer francisca da sua vida??????

Parabens pascoalita, tens muito jeito para contos....

Beijokitas e bons feriados.

Cusca Endiabrada disse...

ai ai essa Francisca era fresca era! Té parece cópia duma endiabrada que eu cá sei ihihih :)*

Laura disse...

Tadinha da Francisca, adorei aquela parte onde ela se deita entre folhas e torna a dormir e acorda com as vozes que já regressam da Missa, tadinha dela, malfadada patroa, tadinha, minha nossa, ainda há gente assim tão má? Caramba e o policia não podia ser melhor, ahhh, estafermo... Beijinhos.

MissEsfinge disse...

Gostei de ler mais uma história da Francisquinha e de ver os seus irmãos formigos eheheh

africana disse...

Estes pedaços de vida são um mimo, dá para ver que esta Francisca se com aquela idade já era uma menina de fibra..imagino que se deve ter tornado uma mulher do caraças!! ahahahaahhah

O Profeta disse...

Um areal morno acolheu
Teus passos ávidos da chegada
Caminhas na procura das marcas
De uma espera desencontrada

Calmaria!
A bonança reivindicou o Sol no celeste
Uniram-se os pedaços de rasgada vela
Tua alma retomou o sonho adiante


Bom fim de semana



Mágico beijo

Pascoalita disse...

Roderick

Pois ... é um defeito meu, ser pouco ambiciosa até no que respeita a sonhos eheheh

Francisca continuou a aprontar, mas felizmente deu-se sempre bem.

Bom fim de semana

Pascoalita disse...

Parisiense

Nem mais! Quem não está bem, muda-se e Francisca ainda saltitou mais um pouco antes de assentar.

Um dia conto como ela, alguns meses depois deste episódio, saiu dum Bus em Fornos de Algodres a pensar que estava em Mangualde ficando ali horas sem dar pelo lapso eheheh

Pascoalita disse...

Olá Princesa :))

Obrigada pela visita. Tentarei retribuir.

Bom fim de semana
jinho

Cusca endiabrada

Também acho. Vocês devem ter aprendido pela mesma cartilha eheheh

Pascoalita disse...

Laurita,

Tadinha da gaiata. Que pecado obrigarem uma criança a levantar-se tão cedo e a rezar contrariada eheheh

Aposto que hoje em vez de ir à polícia, ia direitinha queixar-se à APAV ou chamava a SIC eheheh


MissEsfinge

"Gostei da referência aos "irmãos formigos" eheheh

Pascoalita disse...

nina africana

Agora, à distância no tempo, até dá para rir, mas na altura foi um grande feito.

A mãe dizia muitas vezes que a irmã não teria sido tão hábil para se livrar do "cartiveiro"

Pascoalita disse...

Olá, Profeta :)*

Obrigada pelas palavras mágicas e sábias.

Um beijo

Laura disse...

Claro que nunca se obrigaria uma criança a tamanho sacrificio, nós em casa dos pais raramente iamos á missa, mas, na aldeia da avózinha, a madrinha, caraças da muié, obrigava-nos a levantar cedissimo para a missa das 8, fosse inverno ou não, arre, balha-me deus mais essas coisas a que chama sacrificios e Deus nem os quer, como este mundo baralhou os ensinamentos do cristo...
A nina foi bem fina, e, pirou-se no momento certo, mas,descontou o bilhete de combóio, credo, de certezinha que já descontou lá em cima...essa do bilhete e os ralhos e o trabalho em demasia, tudos epaga..beijinhos nina, muitos..laura.

Espaço do João disse...

Belas histórias, sim senhora.
Desde que nos conhecemos, cada vez mais aprecio a tua maneira de estar na vida. Quanto aos jarros que publiquei, são mesmo dessa cor Vermelho sangue quase negro.
Agora falando sobre a feira agrícola de Santiago do Cacém ( Santiagro ). Vi lá belos exemplares de cornos, e muita pena da minha parte não possuir nenhuns, pois uma boa manada e uns tantos hectares de pasto dava-me um grande jeito. Beijinhos Fernanda e João.

Susana Falhas disse...

Olá Pascoalita!

Depois do seu comentário que deixou, a propósito da inha aldeia(Longroiva) , não podia deixar de passar a qui para agradecer o seu belíssimo comentário, que por sinal deixou-me muito curiosa, pois é minha conterrânea, por afinidade. (Será que os conheço pessoalmente?)

Um grande abraço! Vou passar a seguir o teu blogue, de perto.

Um abraço, Susana Falhas

Bichodeconta disse...

Fiquei maravilhada com a história, a sério amiga..Há por ai muito talento na forma de contar estas ,agnificas histórias ás quais não ficamos indiferentes..Um dia se tiver coragem comto uma muito parecida vivida por mim..É tão bom passar por aqui, infelizmente o tempo nem sempre o permite.. Beijinhos e claro que voltarei..Bom domingo..

Rafeiro Perfumado disse...

Ainda hoje há muitas "Franciscas" por aí, tal como muitas pessoas que se sujeitam a maus tratos por deferência para com alguém "poderoso". Velhos hábitos demoram a mudar...

Beijoca!

umbreveolhar disse...

´Linda história. Gostei de ler. Parabéns!
Já fiz o link no meu blog, como poderás verificar. umbreveolhar
Cumprimentos,
Carlos Alberto Borges
http://umbreveolhar.blogs.sapo.pt

Anónimo disse...

Venho agradecer o comentário deixado na aldeiadaminhavida sobre o meu humilde trabalho.Amorosas as
tuas palavras.

Um beijinho

Também gostei do teu cantinho, calmo, doce, pena que o tempo não se desdobre como tu também dizes.

Teté disse...

Curiosamente ainda existem megeras dessas hoje em dia! Já não se safam é com tanta "limpeza"!

Gostei muito da história, que não li na altura até porque andava de férias!

Felizmente, actualmente já não existem tantas crianças exploradas e a trabalhar tão cedo, embora em trabalhos domésticos e pequenos negócios familiares ainda existam. Ainda à coisa de 15 anos via um puto de 12 a servir às mesas num restaurante caminhense, mas a inspecção de trabalho nunca lá punha os pés...

Enfim, as mentalidades, aos poucos, vão mudando!

Beijocas, nina!