Quem não se lembra de Francisca, a protagonista dos "contos verídicos" que partilhei convosco e constam do arquivo em Etiquetas, sob o título "Aventuras de Francisca" ?
Há muito tempo que tinha prometido contar este episódio ocorrido em Rio Tinto, em que foi necessária alguma “astúcia” para Francisca se libertar duma situação de quase clausura a que estava submetida.
Estávamos em 1966. O pai de Francisca, acabava de regressar de uma curta estadia em Moçambique, para onde tinha partido 2 anos antes, aliciado pela cunhada que ali vivia há muitos anos e que segundo constava, possuía uma grande fortuna em Vila Cabral tendo-lhe enviado a necessária "carta chamada". Com ele levou os 2 filhos mais velhos, António e Isabel, ainda adolescentes, tendo deixado na aldeia a mulher e os 4 filhos mais novos, curiosamente esse foi o único período de tempo em que Francisca foi feliz nos 14 anos de vivência na aldeia.
Mas, tal como aconteceu com muitos que como ele partiam na esperança de um futuro melhor, depressa se apercebeu do fosso que separava a realidade do sonho e esse facto associado às saudades da família que deixara para trás, ditaram o seu regresso ao fim de 2 anos. Meses antes tinha mandado a filha, agora já com 17 anos, entregue aos cuidados de uma Senhora que conhecera em Lourenço Marques, tendo ele lá ficado o tempo necessário para ganhar o suficiente para a viagem de regresso ao lar, enquanto o filho António optava por ficar e ali cumprir o serviço militar.
Um dia chegou à aldeia uma misteriosa carta endereçada a Isabel, sendo a própria Francisca a servir de carteiro. Através do remetente viram tratar-se da senhora ricaça a quem o pai tinha confiado a filha durante a viagem de barco e que agora lhe fazia uma oferta de trabalho como “empregada doméstica” na sua casa em Rio Tinto, onde a família residia e ela passava parte do ano, alternando com longos períodos em África.

Convém aqui referir que Isabel tinha “alergia ao trabalho”, doença que se agravara consideravelmente com os ares africanos, enquanto Francisca, 5 anos mais nova, assim como os irmãos, forneciam uma preciosa ajuda aos pais no trabalho do campo. Agora com quase 13 anos, Francisca sonhava deixar a aldeia e aquela carta parecia caída do céu. A irmã apressou-se a rejeitar a oferta da senhora, sugerindo-lhe que em seu lugar levasse a irmã mais nova que já possuía alguma experiência.
E foi assim que numa manhã de Primavera, um Mercedes Benz conduzido por uma corpulenta cinquentona de aspecto austero, acompanhada de um homem um pouco mais velho, de ar bondoso e simpático, estacionou junto ao chafariz da aldeia, perante os olhares curiosos dos habitantes e após uma breve troca de palavras com a mãe da pequena, Francisca despediu-se, entrou no luxuoso carro e partiu à aventura.

Não era a primeira vez que Francisca saía de casa. Logo que completou a 4ª Classe, foi trabalhar numa vila próxima, num estabelecimento comercial que incluía mercearia, um pequeno café e bombas de combustível, onde permaneceu 1 ano ajudando nas diversas tarefas, tendo sido tratada com carinho. Mas algo lhe dizia que a sua vida no Porto seria diferente. A mãe tinha-a alertado para alguns perigos, mas Francisca era corajosa, aventureira e muito determinada.
Os primeiros dias decorreram normalmente. A família era composta pelo casal já referido, uma filha cujo marido estava em África e 2 netas gémeas da idade de Francisca, um neto de 5 anos cujos pais Francisca não chegou a conhecer. A pequena simpatizou logo com uma das gémeas, de nome Arminda, sentindo alguma animosidade por parte da irmã Clotilde e cedo se apercebeu que ambas tinham verdadeiro pavor da avó, reparando que se afastavam dela sempre que a senhora emproada estava por perto. Aliás, era notório que todos naquela casa, incluindo o marido, se submetiam às ordens da matriarca. Francisca chegou a assistir a agressões físicas às crianças e pelo menos uma vez viu o senhor levar um valente soco sem reagir. Pelo que observava, concluiu que a senhora devia ser muito rica e importante na região e parecia-lhe ser mais temida do que respeitada, reparando nas migalhas que distribuía aos pobres em contraste com as avultadas ofertas à paróquia local, assistindo também a comentários da vizinhança aludindo ao modo como a ricaça se pavoneava no seu mercedes.

Francisca não tinha razão de queixa do dono da casa, de quem inclusive sentia pena, mas à parte os momentos em que à revelia da velha bruxa, a pequena "Loquinhas", assim lhe chamavam em família, lhe dirigia um sorriso ou uma palavra amiga, não se sentia bem ali e não tencionava ficar muito tempo. Por seu lado, a senhora emproada, reclamava consecutivamente das tarefas que lhe destinava e acusava-a de falta de humildade, que obviamente não era submissa como os negros que a serviam e além disso tinha a ousadia de a enfrentar, respondendo-lhe e revelando capacidade de raciocínio com alguma rebeldia à mistura, o que para ela era inadmissível. Era uma daquelas senhoras capazes de mostrar bondade, fazendo questão de depositar sempre uma moeda na mão de cada mendigo que lhe batia à porta, ao mesmo tempo que racionava alimentos, dominava e explorava quem a rodeava ou servia.
Um dever irrefutável de Francisca era levantar-se cedo e assistir à missa das 7,30 todos os Domingo, enquanto a família tinham o privilégio de fazer o mesmo em horário nobre, às 11 horas. E não adiantava reclamar! Às 6 da manhã soava a sineta e Francisca era obrigada a levantar-se e obedecer. Lembra-se de pelo menos uma vez ter desobedecido, não chegando a sair e em vez disso ter-se estendido na trave de granito situada sobre o portão da propriedade e ali, escondida pela folhagem das parreiras, ter retomado o sono, sendo acordada pelo som das vozes das pessoas que regressavam da missa mesmo a tempo de encenar uma triunfante entrada em casa!
Tinham-se passado quase 3 meses e Francisca não vira ainda qualquer pagamento pelo seu trabalho, apesar de já ter questionado a patroa sobre o assunto e ter inclusive manifestado intenção de regressar a casa dos pais. A situação arrastava-se e um dia as coisas entre as duas aqueceram a sério.

Foi numa manhã de Domingo. Incumbida de varrer a adega e ajudar na limpeza das coelheiras, Francisca executava a tarefa demasiado lenta ou sem a perfeição exigida, o que enfureceu a patroa que lhe arrancou bruscamente a vassoura das mãos, ameaçando partir-lha nas costelas.
Francisca não esperou nem mais um dia!!! Correu em direcção ao portão, atravessou a rua e dirigiu-se ao largo da igreja. Entrou numa taberna e ali perguntou onde ficava a esquadra. Um dos clientes apresentou-se como polícia, mostrando-se atencioso e disposto a ajudar, questionando-a sobre as razões que a levavam a dirigir-se às autoridades num Domingo e Francisca encorajada pela confiança que a farda lhe inspirava, contou-lhe o que se passava.
Num tom calmo, quase paternal, o senhor disse-lhe que por ser Domingo não podia recolher a queixa na esquadra e convenceu-a a regressar a casa e a manter-se serena, prometendo-lhe que no dia seguinte pelas 9 horas se deslocaria a casa da patroa para resolver a situação.
Francisca regressou a casa e estranhou o silêncio da patroa, mas na sua ingenuidade acreditou que no dia seguinte ela seria surpreendida pela policia. o que não chegaria a acontecer. Pelas 6 horas da manhã de Segunda Feira foi acordada e intimada a arrumar as suas coisas, porque iria regressar a casa, tendo-lhe o patrão confidenciado que não receasse que os seus direitos estavam garantidos. Em silêncio, os 3 fizeram a viagem no mercedes até à Régua, onde entraram nos CTT e a patroa emitiu um vale dirigido à mãe de Francisca, no valor do salário de 3 meses, ao qual descontou o valor do bilhete de comboio que Francisca teria de apanhar para fazer o resto do percurso.
Só então durante o trajecto de comboio, sozinha com os seus pensamentos, Francisca tomou consciência da tramóia montada pela patroa com a cumplicidade do amável polícia! Influente como a senhora era na zona, era agora óbvio para ela que fora imediatamente por ele alertada para o risco que corria mantendo em sua casa aquela garota rebelde e antes que lhe criasse um problema mais sério, certamente aconselhou a sua devolução à procedência. Apesar do logro em que sabia ter caído, Francisca sentia-se orgulhosa da sua atitude e aliviada por ter precipitado o regresso à aldeia, sentindo-se de novo livre.

E foi assim que ao fim da tarde desse dia, para grande espanto da mãe que a supunha a muitos km dali, Francisca surgiu de mala à cabeça ao fundo da rua:
- Então, filha, já de volta? Despediste-te ou mandaram-te embora?
- Eu queria vir há muito, mas a mazona além de me tratar mal, não me trazia de volta nem me pagava o combinado. Então fui fazer queixa à Polícia e finalmente voltei.
- Ora fizeste tu muito bem. Apoiada !!! Foi a resposta da mãe, batendo palmas.